Entenda como uma tempestade afeta um voo

Rota sobre oceano é apontada como área de mau tempo. Especialistas analisam possibilidade de tempestade causar acidente.

Uma forte tempestade sobre o Oceano Atlântico vem sendo apontada pela maioria dos especialistas como a provável razão para o acidente envolvendo o Airbus da Air France que partiu do Rio de Janeiro no domingo (31) em direção a Paris e desapareceu com 228 pessoas a bordo. O mau tempo na região, segundo pilotos ouvidos pelo G1, de fato é uma constante, mas não é algo que aumente necessariamente os riscos do voo. A reportagem falou com Jorge Barros, diretor da Nvtec, especialista em segurança de voo, com Newton Claizoni, piloto de jato executivo, e com Hamilton Munhoz, piloto de jato executivo e comercial.

É possível prever as tempestades na rota de um voo?

Imagem de satélite mostra como estava o tempo na noite do acidente

Sim. Antes de decolar, o comandante recebe seu planejamento de voo, chamado navegação, em uma pasta organizada pelo despachante de voo, que mostra o que deve encontrar durante a viagem. Além do aviso da navegação, há uma leitura por códigos de números, que são entendidos pelos comandantes e oferecem uma previsão meteorológica por satélite da região que vai ser cruzada. A aeronáutica mostra a fotografia do satélite e oferece um desenho feito à mão por um meteorologista, que a interpreta e transforma em um código a ser lido pelos pilotos. Isso é feito até 36 horas antes de cada voo. Com esses dados, o comandante pode pedir uma rota diferente, mais segura que a inicialmente prevista. Quando recebe a navegação, o piloto a estuda na cabine e decide como vai executá-la, contestando se achar que há algum problema.

Existe algum alerta maior sobre riscos na região do oceano em que ocorreu o acidente?

Mancha em destaque aponta a tempestade pela qual o avião passaria na noite do acidente

Essa região é uma zona de instabilidade que na maior parte do tempo apresenta tempo ruim.Todos os pilotos que passam por ela ficam atentos para desviar dos núcleos das tempestades. Alguns chegam a “ziguezaguear” por toda a viagem. Em relação a um tempo especialmente pesado, não há nenhum alerta específico. Há códigos nas previsões que já requerem a atenção dos pilotos, como o TCU, que significa “towering cumulus”, situação anterior à de CB, “cumulus nimbus”, que são as tempestades mais violentas.

Que ferramentas o piloto usa para analisar o tempo durante o voo?

Imagem detalhada da principal tempestade sobre o oceano naquela noite

Ao longo do voo, o comandante acompanha a meteorologia com três ferramentas:

A mais básica é perguntar ao controle de tráfego aéreo através do serviço Volmet, que passa informações atualizadas por rádio, informando o que mudou desde a partida do voo. Esta é a ferramenta mais clássica.

A segunda é falar com a companhia aérea pelo Acars (Automatic Communication Addressing and Reporting System – uma espécie de computador de bordo ligado por satélite), por voz ou por escrito. É um serviço privado, que as companhias têm por satélite. A empresa aérea ajuda a tomar decisões.

Por último vem a ferramenta mais grosseira, que é o radar meteorológico, com um princípio de funcionamento dos anos 1930. Ele mostra na tela do piloto uma imagem vertical, escaneando as nuvens e permitindo interpretar o miolo delas.

As informações a que o piloto tem acesso são exatas?

Vista interna de um avião durante a noite

Essas coisas evoluem muito rapidamente, especialmente em relação ao que é indicado pelos dois sistemas remotos, mas é possível ter uma previsão meia hora antes de se chegar a uma nuvem. O radar meteorológico, por outro lado, não é uma ferramenta muito precisa. É grosseira e pode iludir os comandantes ao não mostrar em profundidade as nuvens que estão além da primeira. Não é a ferramenta ideal.

A aeronave só passa a identificar uma área de tempestade quando está muito perto dela, entre 30 km e 50 km do núcleo, o que significa cerca de 15 minutos de voo até o avião entrar na tempestade. O piloto pode enfrentá-la ou desviar para cima, para baixo ou para os lados.

Como funcionam os radares meteorológicos?

Nuvens espessas chamadas cumulus nimbus formam as tempestades

Eles emitem uma frequência de ondas que é refletida por água. Se houver uma concentração de água adiante, ele reflete, indicando que pode haver uma nuvem. Normalmente, onde há muitas nuvens, há mais turbulência, mas há exceções em que pode haver turbulência sem nuvens ou nuvens sem turbulência. Há radares mais modernos que têm módulos para detectar turbulências a partir da velocidade do vento. Ainda assim, a turbulência não pode ser prevista com tanta segurança. Nos Estados Unidos, há tecnologias que permitem voar com auxílio de imagens de satélite, que podem até funcionar melhor de que radar meteorológico.


Imagem mostra o tipo de avaria provocada por granizo ao passar por uma tempestade

O que o piloto deve fazer quando há tempestade em sua rota?

Ao longo de todo o voo, as condições mudam. Ele tem de ir acompanhando o desenrolar, analisando o gasto real de combustível, a velocidade real, o clima. Ele vai alterando ao longo da viagem o que for necessário. Ele pode mudar o nível de voo, a rota e a velocidade. Ele muda a altitude como recurso para aproveitar melhor os ventos, como se fosse um surfista numa onda. A velocidade varia em função das condições meteorológicas. Se há turbulência, quanto mais lento o avião estiver, melhor (da mesma maneira que ocorre com um carro em uma rua esburacada). Os aviões são projetados para voar em velocidades específicas para penetração em turbulência. Se não é possível reduzir o impacto, reduzir a velocidade já pode ajudar.

Caso encontre condições de tempo severas repentinamente, o próprio comandante pode se desviar das autorizações de voo originais para garantir a segurança da aeronave. Se o comandante vê uma nuvem muito pesada à frente, ele entra em contato com o controle e solicita uma mudança de curso para evitar passar no meio dela. Ele costuma pedir, mas teoricamente pode até tomar a decisão à revelia. Se um piloto julgar que é preciso agir de forma imediata, sem comunicar nada, ele pode.

A altitude tem alguma relação com a turbulência em uma tempestade?

Normalmente, quanto mais alto se voa, melhor a eficiência em relação a combustível. Não tem necessariamente a ver com a velocidade, mas com a possibilidade de fazer o mesmo percurso gastando menos combustível. Como regra geral, quanto mais alto, mais o avião se afasta das nuvens de turbulência. Mas essa regra vale para cerca de 80% dos casos. Às vezes, pode haver uma turbulência maior numa altitude mais alta.

Muitas vezes não é possível passar por cima da maioria das tempestades, pois elas são muito altas, podendo até passar dos 50 mil pés, ficando acima do teto atingido por muitas aeronaves. A ideia de desviar das tempestades é ir contornando-as, tentando ficar a 20 milhas delas. Até porque, ao passar por cima muito próximo a elas, ainda há risco de enfrentar turbulência. Esse conjunto de nuvens, que parece uma nuvem gigante, é chamado de célula. A única alternativa a passar no meio dela é contorná-la, desviando pelo menos dos núcleos. Nem sempre é possível desviar, e aí o que se faz é procurar as áreas menos intensas das nuvens.

Raios e granizo podem ter um efeito mais violento sobre a aeronave?

Um raio, sozinho, não é uma situação de risco para uma aeronave. A estrutura da aeronave é metálica. Nas aeronaves existem cabos que descarregam energia. Então, o raio passa pela aeronave e é descarregado nas nuvens. O raio não provoca danos na aeronave, principalmente nos equipamentos eletrônicos.

Uma pedra de granizo é diferente e pode se tornar um fator de alto risco para um avião. Uma célula de tempestade é como uma bexiga com alta densidade de pressão e com várias pedras dentro, e o avião passando dentro disso. É basicamente essa a situação que um piloto enfrenta: camadas de granizo, em alta velocidade, vindo de encontro à aeronave. Normalmente, o piloto consegue desviar, porque o radar meteorológico detecta.

Os centros de controle devem alertar para nova formação de tempestade na rota da aeronave?

O interesse do controle de tráfego aéreo é especialmente evitar que dois aviões colidam entre si. Não cabe ao controle de tráfego aéreo separar os aviões nem de situações de tempo ruim nem de possíveis choques com montanhas. O comandante é quem tem essas e outras preocupações. Nos EUA, já há equipamentos melhores e radares que desviam os aviões das nuvens. Na maioria dos centros de controle no Brasil, esses equipamentos ainda não estão disponíveis.

É preciso desviar sempre? Qual o risco de entrar em um núcleo de tempestade?

Entrar no núcleo da tempestade não é necessariamente fatal, mas é desaconselhável porque, na verdade, não se conhece o risco real de estar dentro deste núcleo. Não se conseguiu estudar estes núcleos quanto a sua gravidade real. Na dúvida, recomenda-se que o comandante se afaste deles. Todas essas nuvens muito saturadas apresentam as três ameaças ao mesmo tempo: raio, granizo e turbulência (massas de ar forte). Na fotografia do dia do acidente, chama a atenção a magnitude do tempo ruim.

Tempo ruim é uma constante, mas, no dia do acidente, ele era péssimo, com nuvens em uma altura de até 50 mil pés, não permitindo passar por cima delas. Na hora em que o avião entra em uma nuvem muito carregada, começa a receber um tiroteio de granizo, a chacoalhar de forma violenta e ser alvo de rajadas de raio. A chance de algo deixar de funcionar nessa situação é muito grande. Isso tudo poderia ter sido evitado se ele tivesse desviado do núcleo da nuvem.

O que faz um piloto preferir não desviar?

Desviar gera prejuízo financeiro para a empresa aérea, e é difícil entender a relação colaborativa entre a empresa e suas tripulações. Se a tripulação diz que precisa fazer um desvio de 90 graus, qual a postura da empresa em relação ao combustível a mais que ele vai gastar para isso? É uma decisão da tripulação, ele não precisa consultar a empresa na hora de decidir, mas ele tem que se entender com a empresa depois. É um problema clássico do mundo da aviação e envolve uma decisão humana.

O piloto pode ver que há uma tempestade à frente, mas achar que é normal, que dá para passar por ela. Um outro comandante, em seguida, pode interpretar de forma diferente e desviar sua rota. É uma decisão individual. A praxe é que o comandante tome a decisão discutindo isso com sua tripulação. É uma gangorra permanente. A empresa tem que treinar os comandantes sobre a percepção intuitiva e a tomada de decisões.

Segundo o serviço meteorológico AccuWeather, entretanto, o avião da Air France que desapareceu quando voava sobre o Atlântico enfrentou "tempestades muito intensas" que não poderiam ser evitadas.

Piloto fala sobre acidente com o Airbus

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