O desafio de ir e vir

Rogério Simões

Não é à toa que a rede extremista Al-Qaeda é obcecada pela ideia de derrubar aviões civis ou usá-los como armas contra alvos no Ocidente. Se os bem-sucedidos atentados de 11 de setembro de 2001 deixaram milhares de mortos, a operação de dias atrás envolvendo um jovem nigeriano mostrou que, mesmo frustrados, tais ataques conseguem abalar o inimigo.

A fiscalização em aeroportos já aumentou, as falhas no sistema de vigilância americano foram expostas, irritando o presidente Barack Obama, e muitos passageiros voltaram a sentir um medo adicional de embarcar em um voo internacional. Para a Al-Qaeda, atentados contra voos comerciais parecem ser uma ação de retorno certo: quando funciona, mata centenas ou milhares e espalha o medo. Quando fracassa, ainda assim aterroriza futuros passageiros e impõe custos adicionais nos sistemas de vigilância.

Os custos para a sociedade de tais ousados planos terroristas não seriam tão altos se o embarque em um avião para cruzar fronteiras ou continentes não tivesse se tornado uma atividade tão disseminada pelo mundo, considerada quase uma necessidade básica em tempos de globalização. Tanto os últimos anos do milênio passado como os primeiros deste foram marcados pelo facilitado acesso a viagens de avião para a população de classe média ou mesmo de baixa renda.

A proliferação de companhias aéreas de baixo custo e a ampliação do crédito, fenômenos permitidos pela globalização, reduziram distâncias e fizeram das viagens aéreas um bem sem o qual muitos não conseguem mais viver.

Na verdade, não é apenas a Al-Qaeda que provoca dor de cabeça na indústria do transporte de pessoas. As fortes nevascas que têm atingido a Europa e a América do Norte causaram enormes transtornos a milhares de passageiros que simplesmente "tinham" de viajar.

A necessidade de visitar parentes ou amigos em outro país, de cruzar o canal da Mancha após uma semana de trabalho ou simplesmente de aproveitar merecidas férias do outro lado do mundo leva milhões de pessoas diariamente a estradas, aeroportos e estações de trem. Quando o mau tempo ou o fanatismo político-religioso ameaçam esse deslocamento, o cidadão globalizado se vê perdido, sem opções, sem saída.

Acostumado a mudar de continente em poucas horas, o que para nossos antecipados levaria meses, os passageiros de hoje em dia tem muita dificuldade em lidar com a espera, as filas, a incerteza do embarque, as noites no chão do aeroporto e outros inconvenientes que têm se tornado comuns.

Em um belo artigo dias atrás, no jornal The Guardian, o jornalista Simon Jenkins expôs com todas as letras um fato difícil de contestar: o problema não está nos inconvenientes, mas no número de pessoas que se consideram no direito de ir para e vir de lugares distantes. "De todas as atividades que trazem à tona o egoísmo na humanidade, nada se compara à de viajar", escreveu Jenkins.

Usando o termo "hipermobilidade" para descrever o estado a que a humanidade chegou, Jenkins sugere: "Minha solução para o caos nas viagens durante o inverno? Não viaje. Fique em casa. Faça uma fogueira. Viva e faça compras onde você possa ir a pé. Relacione-se com os vizinhos. Visite parentes que vivem longe em outra época do ano." Poucos parecem ter seguido tais conselhos neste fim de ano.

Viajar para longe, algo que era difícil, caro e raro para gerações passadas, tornou-se para muitos milhões uma necessidade ou um costume impossível de abandonar. A Al-Qaeda sabe disso e provavelmente continuará a lançar homens-bombas numa tentativa de atrapalhar esse aspecto da vida ocidental.

A natureza, mortalmente danificada pela emissão de CO2 de aviões e automóveis, seguirá despejando nevascas e tempestades que desafiam a resistência da moderna tecnologia. E, provavelmente, nós, insistentemente, continuaremos embarcando para destinos distantes, à espera de novos, maiores desafios desse suposto direito de ir e vir, para onde e quando quisermos. Feliz 2010 a todos.

Fonte: BBC/Rogério Simões

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